Biologia em anime: Cells at work


62efd37b4358eb2302a4f3c94bb85aa91530946368_fullPasseando pelo TV encontrei uma bela pérola japonesa da divulgação científica. A série Cells at work oHataraku Saibou em japonês, pode ser traduzida para Células trabalhando no Brasil. Começou como um mangá, escrito e ilustrado por Akane Shimizu em 2015. Já está na casa de 1 milhão e 300 mil cópias e se tornou anime em 2018, com a primeira temporada exibida no Brasil pela Netflix em 2020. O desenho é divertido, mas o conteúdo que está inserido nas histórias o torna ainda mais interessante.

A história gira em torno das constantes invasões de microorganismos patogênicos tentando invadir o corpo e gerar doenças.

Precedentes

O tema não é novo, o longa metragem de 2001 Osmosis Jones também abordou o corpo humano como uma história policial. Onde um glóbulo branco persegue um perigoso vírus. Porém foi um fracasso nos cinemas e rendeu um desenho que durou uns dois anos no cartoon network.

Outro caso é a impagável comédia Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo, filme de Woody Allen. A ultima parte descreve o que acontece durante uma ejaculação. No caso, a “nave” é um sujeito que está em um encontro amoroso e os tripulantes de seu corpo se empenham para que ele não falhe a.k.a broche, de novo. Méritos para Woody Allen como um espermatozóide paraquedista se preparado para a missão de alcançar o óvulo.

A trama

Nessa história o corpo humano é uma imensa cidade onde os orgãos são lugares e os cidadão são células humanizadas, com fisionomia e personalidade, cumprindo diferentes funções para que o corpo funcione. Os protagonistas principais são:

  • AE3803, uma  glóbulo vermelho, ou Eritrócito, que tem como função levar oxigênio, gas carbônico e nutrientes pelo corpo humano, mas é um tanto desastrada, vive se perdendo pelo corpo e se metendo em encrencas;
  • U-1146 é um Neutrófilo/Glóbulo Branco, um anticorpo que atua como um policial vigiando o corpo, sempre preparado para enfrentar as invasões dos patógenos, microrganismos invasores. Ele é sisudo, educado e muito dedicado a seu trabalho. E essa dedicação é refletida com os momentos em que se transforma num assassino enfurecido quando é preciso enfrentar os germes, ele e seus colegas são a primeira linha de defesa do corpo. É frequente o contraste entre seu corpo muito branco e o vermelho dos germes que matou, é exímio usuário de facas.
  • Célula T Citotóxica é um sargento durão, que lidera uma força de elite de anticorpos marrentos que se vestem de preto (com a palavra “Matar” no boné). São corajosos, violentos e severos no treinamento de seus cadetes, as células T virgens, que ainda não enfrentaram patógenos e são medrosas.
  • Monócito ou macrófagos são descritas como lindas mulheres sorridentes com vestidos esvoaçantes e armas grandes, como machados, capazes de cortar os inimigos em pedaços durante os combates.
  • As plaquetas são retratadas como crianças fofinhas, por serem pequenas e fazem a reconstrução de áreas atingidas por lesões. Um dos primeiros episódios é justamente sobre o impacto de um arranhão, que aparece como uma imensa cratera na cidade.

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O conteúdo biológico

Cells levou o detalhamento sobre o corpo humano e seus processos a um alto nível de complexidade e nesse ponto reside seu mérito. Debaixo das metáforas de personagens fofinhos ou violentos estão mostradas as características, funções e capacidades das células descritas: como as roupas vermelhas das hemácias, brancas dos neutrófilos ou mesmo verdes das células dentríticas que vivem no arborizado pulmão, alvo dos ataques de Pneumococos, uma bactéria que tenta invadir o pulmão para provocar uma pneumonia, mas cai numa armadilha do glóbulo branco e acaba encapsulada e expulsa do corpo na forma de um espirro, que é um míssil que explode fora no corpo na forma de um distante atchiiimmm.

As tramas de cada episódio descrevem bem como os processos infecciosos ocorrem e são enfrentados pelo corpo e como atuam os diversos anticorpos. Por exemplo, houve um sobre uma infecção de gripe mostrando claramente as células tomadas por vírus se tornando zumbis e passando a infectar outras células. Esse cenário serve para mostrar a ativação de uma assustada célula T virgem que se torna uma Célula T plena, e musculosa, para enfrentar a infecção. Tanta informação assim cobra seu preço e de vez em quando o desenhos paralisa por alguns segundos para que quadros explicativos descrevam melhor a primeira aparição de cada personagem. Uma solução que devia funcionar perfeitamente nos quadrinhos e foi adaptada para o anime.

A série vem sendo elogiada por médicos e especialistas: O Dr. Satoru Osuka pesquisador em neuro-oncologia na Emory University School of Medicine elogiou um episódio sobre cancer. Onde uma célula do corpo se torna cancerígena, começa a roubar nutrientes e os anticorpos precisam enfrentá-la. Jean, um estudante de medicina de 3o. ano, com graduação em biologia celular e experiência em experimentos clínicos sobre cancer disse que as histórias são bem detalhadas e precisas. Por exemplo, ele já estava acostumado a criar semi-narrativas em sua mente para entender certos assuntos. No caso da historia sobre o acionamento da célula T Virgem por uma célula dentrítica, ele achou a descrição tão boa que passou a ser seu paradigma para entender o assunto. Uma das delícias da série é assistir e conectar as histórias com a realidade do próprio corpo, como lembrar de uma febre ou dor de cabeça. É possível ter uma nova visão sobre uma febre, uma alergia ou a ação de um medicamento. Eu diria que existe até um certo cuidado em não incentivar a automedicação.

O potencial educativo

Como observado por Jean, narrativas e histórias estão entre as formas mais básicas que o ser humano possui para assimilar novos conhecimentos, os mais complexos podem ser melhor entendidos metáforas e analogias. Em termos cognitivos é uma forma de se assimilar conhecimentos novos comparando a informação nova com o que já sabemos. Assim, transformar a microbiologia do corpo humano em um anime é uma forma elegante e eficiente de explicar conceitos científicos numa linguagem mais palatável para as novas gerações. Cells se pode tornar uma excelente ponte de divulgação científica para esse público.

cells-at-work-p2O “ímpeto” de certos personagens nas lutas contra os microorganismos limita um pouco a idade mínima recomendada, especialmente considerando o gosto por armas brancas. Tarantino provavelmente aprovaria o trabalho. Portanto, acredito que seja melhor para alunos maiores. Até mesmo porque a maioria dos conteúdos de biologia citados é mais adequada para alunos de final de ensino fundamental ou ensino médio, dos 12 anos de idade em diante. O mangá já está até rendendo novas versões, como a versão Cells Baby, que descreve o corpo de um bebê dentro do útero e todos os personagens são crianças; Bacteria at work descreve as bactérias e há uma sobre o trabalho das Plaquetas.

Serviria para substituir uma aula? Eu duvido, um dos fios de navalha da divulgação científica é o quanto uma ideia complexa precisa ser simplificada para torná-la mais palatável para leigos. Errar na dose significa perder informação importante. Por exemplo, é da natureza das analogias serem inexatas. Levar tudo ao pé da letra significa o risco de entender um assunto de forma errada. Ainda assim, Cells serve como uma excelente porta de entrada para o assunto. Seja como um meio para despertar o interesse, ou como fonte de analogias que facilitem o entendimento de certos conceitos. O que caracteriza o reino dos materiais paradidáticos. Sua utilidade vai depender de como um educador habilidoso vai contextualizar o desenho e outras informações e/ou exercícios para criar situações de aprendizagem.

Já existem versões para diversas mídias: além do Mangá e do anime já existem discussões sobre uma versão com pessoas para o cinema, há até uma peça de teatro. Pessoalmente, eu acho que o universo de Cells at Work seria perfeito para um jogo de estratégia onde os jogadores pudessem controlar os anticorpos ou os patógenos com o corpo humano como campo de batalha.

Esse potencial educativo vem sendo largamente empregado. A Celgene Corporation, uma empresa biofarmacêutica contratou a produtora para um Mangá educativo para promover a conscientização sobre a psoríase, uma doença de pele. Considerando a variedade de doenças e problemas que acometem o corpo a possibilidade de histórias é imensa, envolvendo micróbios variados, parasitas, doenças autoimunes e outros. Mesmo relações mais tranquilas, como o papel simbiótico da biota intestinal ou dos lactobacilos poderiam se tornar tópicos interessante para outras histórias.  A Farmacêutica Taisho fez uma campanha de prevenção da gripe usando a série como tema.

Um exercício para nível médio que eu consigo imaginar seria usar elementos da série para entender um hemograma, o bom e velho exame de sangue. A ideia seria criar situações de aprendizagem que podem ser inferidas através de dados do exame. Por exemplo. Por exemplo, uma contagem alta de neutrófilos (os soldados brancos com facas do desenho) no sangue provavelmente significa que uma “batalha” pode estar ocorrendo em algum lugar do corpo. Se for este o caso, quais seriam os “inimigos” mais prováveis? Que outras causas podem explicar essa contagem alta? Por outro lado, se a contagem alta fosse de eosinófilos (as meninas de rosca com lanças) o que isso pode significar?

Outro uso seria abordar a descrição do funcionamento de medicamentos. Algo abordado de forma superficial em Osmosis Jones e que certamente poderia se desdobrado e aprofundado no universo de Cells. Imagino que certos antibióticos poderiam ser descritos como aviões bombardeio que explodem os micróbios patogênicos, mas acabam atingindo a biota do intestino e afetando o próprio corpo como dano colateral. Seguindo essa analogia imagino que quimioterapia e radioterapia poderiam ser mostradas como bombas gigantescas. Diversos temas pode ser abordados considerando a área de saúde em geral: como boas práticas de fabricação, vigilância sanitária, uso responsável de medicamentos e resistência microbiana entre outros. E mesmo que casos como esses não se tornem histórias, a estética do mangá pode ser fonte para infografias fantásticas. Enfim, o potencial educativo é imenso.

Outros desenhos

Outro anime que poderia vir para o Brasil e que certamente seria muito interessante para a divulgação de pesquisa agropecuária é o desenho Moyashimon: histórias sobre agricultura que conta a história de um estudante de uma universidade agrícola capaz de ver e interagir com microorganismos.

Imagens

As fontes das imagens estão disponíveis ao se clicar na respectiva imagem.

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